Em meio à tempestade






Diante de uma realidade acelerada e muito automática, a pressão e a velocidade das mudanças fazem as pessoas perderem as referências. Vive-se como se o tempo passasse rápido demais, sem se sentir presente na realidade contemporânea. 

Em meio à tempestade apresenta poemas de forte cunho social e de introspecção reflexiva, tanto diante do fazer poético como da atual instabilidade política e econômica do país. O poema que dá título ao livro é a metáfora do país à deriva, que acaba atingido durante a travessia, com as pessoas se perguntando a causa do naufrágio.

Este poema resgata toda a originalidade e a polêmica, de maneira contemporânea, que envolveu o poema “No Meio do Caminho”, publicado na Revista Antropofagia em 1928 e, depois, no livro Alguma Poesia de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).


Em meio à tempestade nos mostra o olhar reflexivo sobre a vida e o cotidiano, em busca de um alento, diante da pressão e velocidade das mudanças no mundo contemporâneo. Sob a influência drummondiana, há claros traços da poesia social em que mergulham os versos, frente à realidade muito acelerada e ao questionamento do mundo. O título de um poema, como se fosse um jogo da forca, desafia tanto quanto o título de um poema em francês e de outro em latim. Por fim, o leitor é convidado a sentar-se no alto da montanha. E ali pensar como mudar tudo dentro de si mesmo, como no poema “O Fio da Navalha”, referência a um livro clássico da literatura mundial na metade do século 20.




Em meio à tempestade



Sumário

Realidade
Tour de Force
Inspiração
A Partida
Em meio à tempestade
Enigma
Desencanto
À deriva
_ t _ p _ _
Não havia pensado
Travessia
Veritas
Em ruas e palavras
Noite Calma
O Fio da Navalha
Oferenda
À procura da poesia
Fora de Moda
Apesar
Visão Perdida





Realidade

Vi as diferentes cores dos indivíduos
e as diferentes dores dos indivíduos.
Sei como é difícil sofrer o que existe,
sem juntar tudo e sem que exploda.
                                              
Cobri meus olhos e escutei a água
que escorria entre as minhas mãos.
Na solidão, desaprendera a linguagem
e as diversas formas de comunicação.
                                              
Nas várias viagens imaginárias,
em ilhas utópicas sem problemas
e fáceis de habitar, não escutava vozes.
Não chegavam notícias ou salva-vidas.
                                              
Não compreendia meu coração,
que tanto silêncio como solidão
evitam a descoberta de como é
triste ignorar a oculta imensidão.





Tour de Force

A luta rompe a manhã.
Alguns me julgam louco.
Estou lúcido, mas frio.
Luto pelo sustento mais um dia.
Na voz, há desgosto.
Luto com palavras,
mas estou de luto.
                                              
Aceito o bom combate,
em terreno descampado,
sem roteiro e desarmado.
Corpo a corpo,
contra o tempo,
na caça ao vento.
Quando pressinto
o apagar da chama.
                                              
No entreabrir de olhos
termina o ciclo do dia,
num inútil duelo
que não se resolvia.
Fechadas as portas,
a luta prossegue
no quarto do sono.



  
Inspiração

Eu repito
Eu refuto
Eu hesito
Tudo num minuto
Ao manter este rito
Estou resoluto
                                                          
Atiro o papelito
Apesar de que reflito
Em raciocínio infinito
Que não passa de mito
Achar o poema no grito




A Partida

Acordo com mau pressentimento.
O dia é longo, mas os passos são curtos.
Quanta coisa acumulada, mas sem tempo.
Sem nota no banco. Sem notas no caderno.

Estou limpo e sem pressa.
Momento para comprar jornal.
Almoço como último pedido.

Dos olhos do hospital, vejo
que a rota já está na metade.
Não posso dormir, devo voltar.

Combinar encontro ao qual não irei.
Pronunciar palavras: até amanhã.
Minha cabeça dói, devo voltar.

Mas como enganar o tempo,
se o fim é particular.
Curvo-me diante do
limitado momento final,
que se esvai no instante.






Em meio à tempestade

Em meio à tempestade havia um rochedo
havia um rochedo em meio à tempestade
havia um rochedo
em meio à tempestade havia um rochedo.

Nunca se convenceram os náufragos da falta de
providências nem da inevitabilidade do choque.
Nunca se esqueceram de que em meio à tempestade
havia um rochedo
havia um rochedo em meio à tempestade
em meio à tempestade havia um rochedo.






Enigma

Lentamente, na escuridão do desengano,
mas sem emitir qualquer som soberano,
surge uma imagem misteriosa do abismo.
Convida as intuições e os sentidos, mas
sem roteiro, para périplo na natureza mítica.

Não há explicação ou nexo, diante do absurdo original.
O enigma desafia a verdade. A vontade, a mente aberta
e os olhos curiosos enfrentam as trevas do desconhecido.





Desencanto

Minha melhor palavra é o silêncio,
diante de pensamentos opostos
e da completa falta de diálogo.
                                   
Não sou o leitor do mundo.
Não espelho os retratos da vida.
Não reflito as diferentes palavras.
                                   
A leitura sem ambição e sem tempo
tornara-se um mero contratempo.
                                   
Tranquilo e sem estilo,
não serei reconhecido.
Não espero ser lido
e tampouco distribuído.
Terminarei varrido
e logo esquecido.



À deriva

Em meio à pressão do mar de prédios,
nos passos dados pelas ruas da vida,
sigo em frente mesmo contra o vento.
                                   
Não há caminho sem sobressalto,
tampouco reta sem ondulação.
Qualquer curva do passado
pode atrasar a condução.
                                  
Sem direção e sem orientação,
sozinho a buscar referências e
à deriva, na infinitude, sem ação.




_ t _ p _ _

Resvalo em incômoda palavra
que muito extrai o meu sono,
mas que desaparece da mente.
Impede que me defenda
do que não é conhecido.

Ensaio soletrá-la, mas somente
recordo despertar-me, tolhido
pelo embaraço do esquecido.

Se pelo menos me lembrasse de
um sinônimo, teria tempo para
buscar a ilusão que me enganara.




Não havia pensado

Num mundo vigiado
e controlado.
Onde tudo é corrido
e apressado.
                                              
Teclado rápido
por causa
do tempo
encurtado.
                                              
Pouco pausado
diante
do dever
escalonado.
                                              
Só resta ficar
enfadado
ou então
desnorteado,
por não ter
desvendado
que tudo
havia mudado,
para permanecer
tudo parado.




Travessia

Com a taça na mão, espero o amanhecer.
No primeiro branco da última noite escura,
mas iluminada pelas cores e pelos sons,
farei nova lista para depois arquivá-la.
                                              
Olharei o céu para contemplar o acaso,
aceitarei a simplicidade do presente,
erguerei a taça e brindarei em memória
do passado, assim como desejarei o
melhor do porvir do futuro.  O corpo
se renovará, como a espuma do mar.
                                                          


  
Veritas

Este é um tempo dividido,
de indivíduos divididos.

Percorremos em vão
as ruas bloqueadas
da comunicação.
Todas estão ocupadas,
surdas à argumentação.
                                              
Não te encontro ao visitar os fatos.
Não brotas da lei e tampouco da pedra.
Não narras com certeza frente à contradição.

Te ocultas na minha dúvida.
Calo-me e não te entendo.
Sem a mitologia, sigo vivendo.



Em ruas e palavras

Luto com palavras,
mas não sou louco.
Diante do desafio,
aceito o combate.
Estou lúcido
frente à ameaça.
                                              
No corpo a corpo
contra o inimigo,
luto o tempo todo
no centro da praça.
À esquerda,
não há saída.
À direita,
nem perspectiva.
                                              
Tudo mudou,
não fico ausente.
Daqui para frente,
será diferente.
                                              
Foi muito
impactante
o que aconteceu
naquele instante.

Se tudo perde
o sentido,
me revolto.
Se os canais
se fecham,
explodo
em ruas e
palavras.



Noite Calma

Mandam parar. Bloqueiam o caminho.
As represálias provocam redemoinho.
Suave vermelho no duro asfalto negro.
Pelo leve branco no ar, já não respiro.
                                   
Meia-noite nas horas silenciadas.
As palavras de ordem dispersadas
Saíram em passadas alarmadas.
Pacificadas as ruas sonhadas.



  
O Fio da Navalha

Do alto da montanha, contemplava a cidade.
De sua vastidão, buscava uma iluminação.
Não poderia descrever tamanha procura.
No horizonte, apareciam terras e nuvens
que se confundiam muito no longínquo.
                                   
O silêncio e o vento eram companhia,
ao amanhecer sentado em meditação.
Penetravam-me a mente e o coração,
durante o olhar de contemplação
da Eternidade, ao raiar do dia.





Oferenda

Escrita no mar,
a palavra
Oferenda.
Balança
as rosas.
Embala
o barco.
Lá dentro,
circulam
pedidos.
Tudo passa
rápido.
Peixes
devoram.
Memória
apaga.
A palavra
Oferenda
recolhe-se
ao dicionário,
mas algo
acontece
ao atrair
boa energia.



  


À procura da poesia

Não quero a ambição do poder ou da glória,
mas sim soltar o que se esconde no peito.
Escrever no papel ao decifrar o sonho.
Contar algo, mesmo que sem sentido
ou sem forma. Aquilo que não sei,
embora vagamente registrado, mas
que esmaece em minha mente.





Fora de Moda

Não se envia mais correio elegante
Não há mais brincadeira dançante
Tampouco ouvir disco na vitrola
Tomar o bonde ou assistir matiné
No domingo, também está démodé
santiguar-se em genuflexão por ora.
                                              
Tantas palavras estão em desuso.
Tantos valores ficaram de lado.
Tantas coisas foram abandonadas.
Tantos amores ficaram perdidos.
Tantos passados foram deixados.
Tantas vidas estão automatizadas.
Tantas pessoas vivem desencontradas.
Tantas realidades parecem ligadas.
Tantos futuros serão desconectados.



Apesar

Apesar do fantasma do passado
Apesar da opressão do presente
Apesar da restrição da manifestação
Apesar da limitação do pensamento
Apesar da impureza do branco
Apesar da imperfeição do verso
Visualizo a ambição da poesia




  
Visão Perdida

Atiram nos olhos,
não querem que
se registre
a truculência e
a perversidade.

Evitam a
iluminação
dos instintos
dos carrascos.

O lugar do
testemunho
permanece na
obscuridade,
assim oculto
a todos.

As ruas
e as
ocasiões
de visibilidade
são
reprimidas,
por causa
da visão
perdida.


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